Centrada nessa abordagem que vê a língua como pura fonologia, a cartilha introduz o aluno no
mundo da escrita apresentando-lhe um texto que, na verdade, é apenas um agregado de frases
desconectadas. Essa concepção de "texto" para ensinar a ler está tão internalizada no imaginário
do professor que, certa vez, uma professora que se esforçava para transformar sua prática
documentou em vídeo uma aula e me enviou, para mostrar como já conseguia trabalhar sem a
cartilha. A atividade era uma produção coletiva de texto na lousa. O texto produzido pelos alunos
e grafado pela professora era o seguinte:
O sapo
O sapo é bom.
O sapo come inseto.
O sapo é feio.
O sapo vive na água e na terra.
Ele solta um líquido pela espinha.
O sapo é verde.
Como se pode observar, cada enunciado é tratado como se fosse um parágrafo independente.
Exigências mínimas de coesão textual, como não repetir "o sapo" em cada enunciado, nem sequer
são consideradas. Só na quinta frase aparece, pela primeira vez, um pronome para substituir
"o sapo". E na sexta frase, lá está ele de novo. Seria fácil concluir que a professora é que não sabe
escrever com um mínimo de coerência e coesão.Mas não era esse o caso. Além de saber escrever,era
uma ótima professora: empenhada e comprometida com seu trabalho e seus alunos. Apenas havia
interiorizado em sua prática o modelo de "texto" que caracteriza a metodologia de alfabetização
expressa nas cartilhas. E de tal maneira que nem sequer tinha consciência disso: foi preciso
tematizar sua prática a partir dessa situação documentada para que ela pudesse se dar conta.
Como a metodologia de ensino expressa nas cartilhas concebe os caminhos pelos
quais a aprendizagem acontece
Poderíamos dizer, em poucas palavras, que na concepção empirista o conhecimento está "fora"
do sujeito e é internalizado através dos sentidos, ativados pela ação física e perceptual. O sujeito
da aprendizagem seria "vazio" na sua origem, sendo "preenchido" pelas experiências que tem
com o mundo. Criticando essa idéia de um ensino que se "deposita" na mente do aluno, Paulo
Freire usava uma metáfora — "educação bancária" — para falar de uma escola em que se pretende
"sacar" exatamente aquilo que se "depositou" na cabeça do aluno.
Nessa concepção o aprendiz é alguém que vai juntando informações. Ele aprende o ba, be, bi, bo,
bu, depois o ma, me, mi, mo, mu e supõe-se que em algum momento, ao longo desse processo,
tenha uma espécie de "estalo" e comece a perceber o que é que o ma, o me, o mi, o mo e o mu
têm em comum.Acredita-se que ele seja capaz de aprender exatamente o que lhe ensinam e de
ultrapassar um pouco isso, fazendo uma síntese a partir de uma determinada quantidade de
informações. Na verdade, o modelo supõe apenas a acumulação. Os professores é que, convivendo
com alunos reais o tempo todo, acabam encontrando na figura do "estalo" a resposta para
certas ocorrências aparentemente inexplicáveis. Porque sabem que alguns entendem o sistema
logo que aprendem algumas poucas famílias silábicas, enquanto outros chegam ao Z de zabumba
M1U2T5 2
M1U2T5 3
sem compreendê-lo. E já que não têm como entender essas diferenças, buscam explicações no
que se convencionou chamar de "estalo". Freqüentemente dizem: "O menino deu o estalo" ou
"Ainda não deu o estalo, mas uma hora vai dar".
Para se acomodar a essa teoria, o processo de ensino é caracterizado por um investimento na
cópia, na escrita sob ditado, na memorização pura e simples, na utilização da memória de curto prazo
para reconhecimento das famílias silábicas quando o professor toma a leitura. Essa forma de trabalhar
está relacionada à crença de que primeiro os meninos têm de aprender a ler e a escrever dentro
do sistema alfabético, fazendo uma leitura mecânica, para depois adquirir uma leitura compreensiva.
Ou seja, primeiro eles precisariam aprender a fazer barulho com a boca diante das letras para
depois poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos.
Assim, os três tipos de concepção a que nos referimos no início deste capítulo se articulam para
produzir a prática do professor que trabalha segundo a concepção empirista: a língua (conteúdo)
é vista como transcrição da fala, a aprendizagem se dá pelo acúmulo de informações e o ensino
deve investir na memorização. Na verdade, qualquer prática pedagógica, qualquer que seja o
conteúdo, em qualquer área, pode ser analisada a partir deste trio: conteúdo, aprendizagem e ensino.
Para mudar é preciso reconstruir toda a prática a partir de um novo paradigma
teórico
Quando se tenta sair de um modelo de aprendizagem empirista para um modelo construtivista, as
dificuldades de entendimento às vezes são graves. De uma perspectiva construtivista, o conhecimento
não é concebido como uma cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito: pressupõe uma
atividade,por parte de quem aprende,que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes.
Isso vale tanto para o aluno quanto para o professor em processo de transformação.
Se o professor procura inovar sua prática, adotando um modelo de ensino que pressupõe a
construção de conhecimento sem compreender suficientemente as questões que lhe dão
sustentação, corre o risco, grave no meu modo de ver, de ficar se deslocando de um modelo que
lhe é familiar para o outro, meio desconhecido, sem muito domínio de sua própria prática —
"mesclando", como se costuma dizer.
O equívoco mais comum é pensar que alguns conteúdos se constroem e outros não. O que,
nessa visão "mesclada", vale dizer que uns precisariam ser ensinados e outros, não. Em outros
casos o modelo empirista fica intocado e as idéias que as crianças constroem em seu processo
de aprendizagem são distorcidas a ponto de o professor vê-las como conteúdo a ser ensinado.
Um exemplo disso são os professores que, encantados com o que a psicogênese da língua
escrita desvendou sobre o que pensam as crianças quando se alfabetizam, passaram a ensinar
seus alunos a escrever silabicamente. Que raciocínio leva a uma distorção desse tipo? Se os alunos
têm de passar por uma escrita silábica para chegar a uma escrita alfabética, ensiná-los a escrever
silabicamente faria chegar mais rápido à escrita alfabética, pensam esses professores. Essa
perspectiva só pode caber num modelo empirista de ensino, cuja lógica intrínseca é a de organizar
etapas de apresentação do conhecimento aos alunos. Essa lógica não faz nenhum sentido num
modelo construtivista