Foi aí que nasci: nasci na sala do terceiro ano, sendo professora Dona Emerenciana Barbosa, que
Deus a tenha. Até então era analfabeto e despretensioso. Lembro-me: nesse dia de julho, o sol
que descia da serra era bravo e parado. A aula era de geografia, e a professora traçava no quadronegro
nomes de países distantes. As cidades vinham surgindo na ponte dos nomes, e Paris era
uma torre ao lado de uma ponte e de um rio, a Inglaterra não se enxergava bem no nevoeiro,
um esquimó, um condor surgiam misteriosamente, trazendo países inteiros. Então, nasci. De
repente nasci, isto é, senti necessidade de escrever…
Carlos Drummond de Andrade
E não me esquecer, ao começar o trabalho de me preparar para errar.
Não esquecer que o erro muitas vezes se havia tornado o meu caminho.
Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma
brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo
do delírio e erro.
Meu erro, no entanto, devia ser o caminho de uma verdade, pois quando erro é que saio do
que entendo.
Se a "verdade" fosse aquilo que posso entender, terminaria sendo apenas uma verdade pequena,
do meu caminho.
Clarice Lispector
[…] para cada pessoa há coisas que lhe despertam hábitos mais duradouros que todos os
demais. Neles são formadas as aptidões que se tornam decisivas em sua existência. E, porque, no
que me diz respeito, elas foram a leitura e a escrita, de todas as coisas com que me envolvi em
meus primeiros anos de vida, nada desperta em mim mais saudades que o jogo das letras.
Continha em pequenas plaquinhas as letras do alfabeto gótico, no qual pareciam mais joviais e
femininas que os caracteres gráficos. Acomodavam-se elegantes no atril inclinado, cada qual
perfeita, e ficavam ligadas umas às outras segundo a regra de sua ordem, que seja, a palavra da
qual faziam parte como irmãs.[…] A saudade que em mim desperta o jogo das letras prova como
foi parte integrante de minha infância. O que busco nele na verdade, é ela mesma: a infância por
inteiro, tal qual a sabia manipular a mão que empurrava as letras no filete, onde se ordenavam
como uma palavra. A mão pode ainda sonhar com essa manipulação, mas nunca mais poderá
despertar para realizá-la de fato. Assim, posso sonhar como no passado aprendi a nadar. Mas isso
nada adianta. Hoje sei nadar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo.
Walter Benja